quinta-feira

Quantos para um sonho?

(Comentário sobre o filme "Os sonhadores", por ocasião de sua exibição no cine-clube da Faculdade de Medicina da UFG, em março deste ano)

Antes de começar a discutir um filme, caberia a pergunta: “O que é um filme?” Apesar de ser pergunta aparentemente simples, não o é, pois tudo que é filmado por uma câmera e é colocado numa tela é, por bem ou por mal, um filme: sejam gravações de terrorista no Iraque, seja um vídeo da festa de aniversário da filhinha ou uma mega-produção de Hollywood.

No entanto, não me ocuparei deste assunto. Fato é que há várias formas de analisar um filme, se o tomarmos enquanto tendo algo de artístico. Cabe lembrar que arte aqui é entendida como a expressão de sensações e sentimentos por parte de um autor, supondo a criação de sensações ou de estados de espírito de caráter estético e carregadas de vivências pessoais naqueles que apreciam da obra. Sendo assim, um filme abrange, além daquilo que está dito na história, o que não está dito, que é, de certa forma uma técnica.

Este aspecto, no caso de Os Sonhadores, está ligado, por exemplo, aos enquadramentos originais usados pelo autor – feitos sobretudo dentro de um apartamento –, às cores nas tomadas, às montagens feitas e às edições dinâmicas e com outros filmes entremeados à ação das personagens Theo, Isabelle e Matthew. Por diversos momentos, são utilizados trechos pouco óbvios de filmes bastante conhecidos entre os cinéfilos da época em Paris, entre eles: “Scarface” (original), “Shock Corridor” e “Bande à part”.

É interessante notar o jogo que Bertolucci, diretor do filme, faz com os filmes, uma vez que, diz ele, naquela época os cinéfilos de Paris faziam vários jogos assim entre si, isto é, diziam uma frase do filme ou interpretavam algum personagem para que os outros adivinhassem.

Bertolucci diz ainda que sua intenção neste filme é de que elementos do passado e do presente tenham uma interação e se unam em alguns pontos. Por isso, para ler o manifesto na “Cinemathéque”, foram chamadas as mesmas pessoas que o leram na realidade, atualmente mais velhas, obviamente. O manifesto lido no filme, diga-se é o texto original, escrito por Godard para aquela ocasião.

A ocasião na cinemateca de Paris em 1968 era a seguinte: o seu diretor, de sobrenome La Langlois, era muito prezado em seu meio – e Paris era uma capital de cinéfilos graças à política, implantada por ele, de exibir ,no lugar que ele gerenciava, todo tipo de filme. Pois bem, La Langlois, foi demitido em 1968 pelo governo francês, mantenedor do órgão, por “incompetência em seus trabalhos. Resultado: revolta dos cinéfilos!

Revolta que surtiu efeito, pois o diretor foi readmitido. E o fato dessa revolta ter dado certo impulsionou os estudantes da época a manifestarem seu descontentamento com o governo.francês, a lutarem e a demonstrarem seu flerte com os sindicatos e com as idéias socialistas – sobretudo maoítas – de revolução.

Maio de 1968, contudo, é apenas o pano de fundo para a história que o filme conta. Isso porque o filme evidencia os sonhadores – e obviamente seus sonhos. Se sonhadores não todos os jovens da época, pelo menos os personagens principais o são. São seus sonhos que dão tônica ao filme.

O fechamento da cinemateca serve como alicerce para que os três se descubram. Aliás, pode-se perceber que os irmãos da história querem descobrir alguém que se encaixe às suas fantasias, que, com eles, faça Um – uma laranja inteira, por assim dizer. Isso porque, apesar de eles fingirem romper de algum modo com as regras paternas estabelecidas – mais nos discursos do que na ação – e de o pai ser completamente desmoralizado naquela casa, eles não chegam ao incesto de fato. É preciso um terceiro elemento. Isso é o que choca: a transgressão, que Flávio Kothe, quando veio comentar o filme em Goiânia, chamou de “pouca vergonha”.

Eles usam Matthew para transgredir e o tratam como criança. Paradoxalmente, é ele que, em determinado momento, percebe que os irmãos estavam afundados em suas fantasias e que não queriam, segundo ele, “crescer”. Sabe-se lá o que vem a ser crescer, mas, por mais que os irmãos tenham sido sacudidos pelo americano, no final do filme, sua fantasia continua: eles seguem, ambos, para confrontar a polícia – o que não uma coisa exatamente eficaz – e abandonam o americano, que fica em luto.

A pedra que invade a sala e rompe a janela tenta trazer a realidade aos personagens e dar uma solução àquilo que não a tem. Pelo menos, não desta maneira.

Um comentário:

Anônimo disse...

sua opinião sobre o conflito entre os gêmeos e o mathew converge muito com a minha. é legal encontrar identificação.

hm, e gostei dos outros textos seus que li acima.