domingo

Serviço de Relacionamento OCARTAZ

Rala, mas não escassa, a tinta do cartaz não se acaba, até que chegue ao fim. Mas ainda tem.

Envie suas dúvidas, comentários, perguntas, críticas e sugestões.

Ameaça

E não por ter o que não falar, era calada. Calada e mulher. Aliás, já mudo isso um pouco: não chegava a mulher; era fêmea, e não era calada de verdade. Falava muito, até; e variava entre uns quatro ou seis assuntos: gente, novelas, roupas e comidas estavam entre os principais. E porque comunicativa, era calada. Para si mesma.

Não ouvia vozes -- nem as que se obedecem, nem as do pensamento. No mais íntimo, assim como quando ia caminhar só, quando lia ou quando via um programa de televisão fazia questão de calar-se. Não que quando quisesse falar a voz não viesse. Mas abafava. E quanto mais não dizia, mais feliz ficava em não dizer e talvez só por isso, conseguia as informações que poderia compartilhar com os outros; não as dela. Prestava toda a atenção do mundo àquilo que fazia naquela hora: se andava, pensava nos passos; se lia, não interpretava, mas sabia a história.

Em seu método, ela tinha coerência. Eu vejo como ela conversa com as amigas. Mais para quê?

Para poder falar de gente e ver como ela faz parte dessa gente. Para que ela compare a vilã e o mocinho da novela com as pessoas em sua vida. Para esconder que ela ama o Dante, que não é galã de televisão. Para que ela diga enfim algo, porque embora calada para si, eu já disse, ela fala.

Mas ali, no meio do que ela fala, abre-se uma falha, pois ela fala o que dizem para ela, e não -- digamos -- o que vem de um violino acompanhado por um cantor que parece que ela ouve às vezes. Esse meio é o problema de hoje. O problema dela de hoje. Porque hoje o meio está assim tão meio que incomoda. É uma bela cólica em nossa barriga -- e logo depois de voltar de seu encontro com Dante!

Será que está perto de menstruar? Não. Ela refez as contas. Definitivamente não. Mas a dor não passa, e sangra, embora não na carne. Ela checou.

Dante. Dos que conhecia era o único por quem ela se comivia e -- pasme -- às vezes antes de dormir pensava nele. Não que de fato pensasse e nem se comovesse, porque como ela pensava calada, o pensamento era aquele violino abafado num quarto escuro e com isolamento acústico. Em coisa de 2 segundos não havia mais pensamento, nem violino, nem violinista, nem cantor, nem voz, tão potente o isolamento.

E Dante, embora eu não o conheça, parece-me que foi o único, com seu jeito mirrado e tímido que conseguiu fazer soar a música: ele também não fala, não tem assuntos complexos e tem cara de inteligente. De rosto triangular, sobrancelhas grossas, lábios finos, boca contraída e um olhar distante, como se visse além das coisas. Mas ele mal e mal enxergava o que estava em sua frente, por isso perfeito para ela.

E suponho que porque não havia entrelinhas que ela demonstrasse, pelo menos para o Dante, ele era o rapaz preferido dela -- e, eu repito, ela escondia de si insistentemente. Se contara para as amigas? Não, pois se não contara nem para si!

Dante também gostava dela. Começou a gostar dela há pouco, pois se conheceram há mais ou menos um mês. Mas ele sabia disso. Eles tinham amigos em comum. E por que diabos Dante a achou interessante? Era moça sem entrelinhas e -- pensava ele -- sem complexidades. Ele não sabia mas a encarava como um biscoito de queijo amanhecido: já fora mais crocante, mais suculento, mais quente, mas continuava alimento e -- porque embatumado -- leva mais tempo para ser mastigado. Isso o atraía.

Foi então que sentaram-se lado a lado, e quando o violinista e o cantor começaram a tentar incomodá-la com seu som estridente, ela suou frio por uns três milésimos de segundo. E como tudo que é dentro está isolado, houve uma troca de umas boas dez palavras para cada lado. Não mais.

Ela, que já tivera muitos outros rapazes ao seu lado, dos quais aliás reclamava muito -- coração burro! --, não falou com ele. Para isso, uma bronca no cantor e umas três pauladas no violinista bastavam: o violinista sangrava. Era bom assim porque ela dava tempo para que ele se recompusesse e voltasse a tocar mais adiante. Ela precisava dele lá, machucadinho, mas tocando assim não; era pra ficar quieto. E ela estragaria tudo se trocasse mais palavras com o Dante!

Foi quando o cantor começou novamente a entoar: Doí! Ah, como doí!

Mas decidiu calar a boca, para não se machucar.