sábado

Vida urbana

Goiânia, a cidade onde moro, a exemplo de algumas outras, cresceu rápido e de repente, depois da chegada de Brasília.

Essa parte todos sabem.

Poucos percebem, mas acho que também sabem: isso é motivo para que os habitantes da cidade antiga tenham um saudosismo -- digamos -- exagerado. São aquelas pessoas que contam as histórias das ruas: rua 24, rua 4, rua 5, rua 3, rua 55 e assim por diante. Obviamente essas histórias incluem seus personagens -- uns mais reais que os outros.

Pois bem, essas pessoas às vezes têm boas histórias. Nem sempre. Em geral, quanto mais particular for a história, melhor fica. Mas toda essa saudade faz com que as partes mais velhas da cidade fiquem mal conservadas e, conseqüentemente, decadentes tanto quanto possível.

Ter pessoas fechadas, difíceis e que bloqueiam o progresso por aqui é um caso sério. Mas não quer dizer que, por isso e porque a atividade agropecuária aqui é fundamental, o lugar seja exatamente mesquinho.

Eu digo e repito: é questão de renda, e não de tamanho. A classe média se relaciona entre si, e o mesmo vale para as classes alta, baixa e miserável. Dentro desses grupinhos todo mundo se conhece, porque no final das contas é pouca gente.

Quanto a tamanho, Munique e Goiânia estão extremamente próximas. Ninguém fala que Munique é pequena; sinal de que Goiânia não é pequena. Um milhão e pouco de pessoas é bastante gente. Não é bem uma fazenda, a não ser que seja uma fazenda gigantesca, com muito peão e sem proprietário. Não é o caso.

Trata-se de uma cidade tipicamente brasileira. É claro que tem gente pequena; tem gente que faz conta só com cabeça de gado; tem gente que mata quando é desagradado, mas isso não é privilégio só nosso. Vide o caso do ex-agente da KGB, assassinado com polônio radioativo.

Para provar que a questão não é de tamanho, basta pegar alguém do alphaville e colocar para tomar uma cerveja lá na vila papel 52. Aposto que não conhecerá ninguém.

E os goianienses insistem: "Eu detesto Goiânia! Aqui não tem nada pra fazer!"

Não?

Primeiro que as pessoas têm que procurar. Não vai bater um vendedor de lazer na sua porta, oferecendo carona para a peça de teatro que está em cartaz. Mas tem teatro em cartaz sim.

Segundo e mais importante: as pessoas que acreditam não ter nada para fazer estabelecem a crença de que ter qualquer coisa legal nesta cidade é um privilégio proibido e inexistente -- se não para todos, pelo menos para elas.

Se tiver mesmo o que elas querem, as coisas se complicarão: ou terão que procurar algo novo para reclamar, ou terão que se preocupar com problemas mais pessoais, coisa que geralmente elas querem ignorar para todo o sempre.

Poderíamos estar mais bem servidos? Sim, sem dúvida. Mas alguém tem que permitir que o esforço seja feito.

Reclamar do lugar onde se mora é um cliché e costuma impedir os esforços. Soma-se a isso mais um fato: a vida de muita gente é um cliché. E -- convenhamos -- viver o que já está pensado é bem mais tranqüilo.

Pensar na própria vida costuma dar muito trabalho.

quinta-feira

A repetição

"I'll be back", diz a princesa Leia em Guerra nas Estrelas.

E de fato voltou. Além dos três episódios antigos, a série de Guerra nas Estrelas ganhou novos episódios há alguns anos. Sinal dos tempos.

São ainda sinal dos tempos a volta dos cortes de cabelo moicanos, a calça jeans de cintura alta, as roupas de ginástica meio bregas, a regravação de músicas antigas e os contínuos blockbusters -- que surgiram há uns 20 anos. Isso quando não repetem os filmes, às vezes mudando uma coisa ou outra: os recentes "A fantástica fábrica de chocolates" e "Superman" ilustram isso.

O gótico "the Cure" foi transmutado em novos góticos como Marilyn Mason e Evanescence, que são góticos a sua própria maneira -- mas gostam de falar do mesmo tema. Renato Russo e Cazuza voltam -- se é que já saíram -- à moda. E Madonna nunca esteve tão "disco" como agora. Até Michael Jackson e Prince andam tentando.

Enfim, os exemplos são inúmeros, depois do buraco que se abriu em meados da década de 90, quando os Estados Unidos se viram como potência isolada e a produção de idéias se pôs a cochilar ou a se repetir.

Surgiram coisas novas, naturalmente, mas não tantas. Só um vazio como esse seria capaz de trazer de volta a década de 80 -- tida nos livros como a "década perdida" -- e as outras décadas de 70, 60, 50,...

E agora, depois de falar que tudo aquilo foi perdido de uma forma ou de outra, as pessoas olham para trás e vêem que não foi tão ruim assim. Saudades da infância: fenômeno interessante. É possível que tenha havido coisas boa por lá.

Mas não basta isso: agora voltamos à construção de muros -- entre israelenses e palestinos e entre americanos e mexicanos -- e voltamos à bomba nuclear. Parece idéia do Enéas, mas não é. "Back to the chain!"

Falta voltar o socialismo, dividir a Alemanha, colocar duas potências para duelarem, acabar com a liberdade de expressão, colocar os militares no poder e aí sim teremos tudo estabelecido, tudo pronto para que as coisas voltem ao seu estado anterior. E para que assim as pessoas voltem ao seu estado natural de poder protestar contra "tudo isso que está aí". Vão voltar a acreditar em ideais, a se organizar em comunidades Hippie, a engordar, a fazer permanente, a pintar quadros com o Belo e assim vamos.

É confortável, pois construiremos tudo de novo para poder descontruir, quebrar o muro. E depois voltará o vazio, a queda dos ideiais de novo, e depois a reconstrução e assim sucessivamente.

Pode até ser confortável a princípio, mas não esconde o vazio. E tenho a certeza.

sexta-feira

É a vovozinha que está em desenvolvimento!

As pessoas têm medo e vergonha das palavras, obviamente.

Branco é branco. Preto é preto. Mesa é mesa. Americanos são americanos. Vida é vida. Morte é morte. Sexo não é rapidinha, nem brincadeira. É sexo. Câncer é câncer – e não “neo”. E por aí vai. Assusta mas é.

Claro que as palavras têm uma carga subjetiva e que nem sempre se diz exatamente o que se quer, ou se diz uma coisa querendo que outra seja dita. Há uma posição subjetiva em jogo. Mas não é por isso que não se pode tentar dar nome aos bois de uma maneira mais adequada, para tentar não ofender a si mesmo nem a ninguém. A ofensa vai acontecer de qualquer modo e, às vezes, esconder é pior: finge-se que nada acontece e não se elimina a base do problema.

Digo mais: se sinônimos fossem exatamente iguais, não haveria duas palavras; só uma. E o pior é uma expressão que tenta mascarar um adjetivo claro e pesado.

O Brasil não está “em desenvolvimento”, até porque é lógico pensar que qualquer lugar ou pessoa do planeta e qualquer está em desenvolvimento, uma vez que continua. Parou de viver, parou de se desenvolver. Ainda que para trás, desenvolve-se algum movimento. Sempre.

Alguns usam “subdesenvolvimento”; outros, da esquerda dos anos 80, “terceiro mundo”. É menos mal, mas ainda esconde um pedaço. O Brasil é pobre. As pessoas são pobres. As cidades são pobres, os museus são pobres. Pobres.

A pobreza está em cada detalhe, cada pintura malfeita pela cidade, cada parede quebrada, cada casa mal construída, cada morro, cada jeitinho, cada gramado mal cuidado, cada denúncia de corrupção, cada piso desencaixado, cada terreno baldio, cada buraco na rua, cada chuva que destrói a cidade inteira, cada poste com a fiação emaranhada.

É pobre. É jeca. Repito: pobre. Pobre e não é limpinho. Se isso dói, é um problema a ser resolvido. E eu pago pra ver algum desenvolvimento maior disso daqui.

Em meio a isso, o prefeito de Goiânia lança uma campanha para fazer da cidade a mais limpa do Brasil. Não será difícil, mas duvido que consiga. Pode até melhorar, mas, brasileiros, continuaremos pobres e sujinhos.

007 brasileiro

É obvio que o óbvio aconteceu. Os bandidos descobriram que os museus brasileiros são precários: se não o são no acervo, o são na segurança. E agora, além do museu no Rio, um museu em Embu (São Paulo) foi roubado. Chama-se Museu de Arte Sacra dos Jesuítas. E, apesar do nome, deve ter alguma coisa valiosa, senão não seria roubado – porque o roubo pressupõe um comprador ou um apaixonado, neste caso.

A arte sempre esteve acompanhada, ao longo da história, de uma série de mistérios, incluindo o roubo. Os filmes exemplificam isso.

Mas aqui roubar está muito fácil. Não tem mistério nem dá tesão.

Procura-se a direita

domingo

Serviço de Relacionamento OCARTAZ

Rala, mas não escassa, a tinta do cartaz não se acaba, até que chegue ao fim. Mas ainda tem.

Envie suas dúvidas, comentários, perguntas, críticas e sugestões.

Ameaça

E não por ter o que não falar, era calada. Calada e mulher. Aliás, já mudo isso um pouco: não chegava a mulher; era fêmea, e não era calada de verdade. Falava muito, até; e variava entre uns quatro ou seis assuntos: gente, novelas, roupas e comidas estavam entre os principais. E porque comunicativa, era calada. Para si mesma.

Não ouvia vozes -- nem as que se obedecem, nem as do pensamento. No mais íntimo, assim como quando ia caminhar só, quando lia ou quando via um programa de televisão fazia questão de calar-se. Não que quando quisesse falar a voz não viesse. Mas abafava. E quanto mais não dizia, mais feliz ficava em não dizer e talvez só por isso, conseguia as informações que poderia compartilhar com os outros; não as dela. Prestava toda a atenção do mundo àquilo que fazia naquela hora: se andava, pensava nos passos; se lia, não interpretava, mas sabia a história.

Em seu método, ela tinha coerência. Eu vejo como ela conversa com as amigas. Mais para quê?

Para poder falar de gente e ver como ela faz parte dessa gente. Para que ela compare a vilã e o mocinho da novela com as pessoas em sua vida. Para esconder que ela ama o Dante, que não é galã de televisão. Para que ela diga enfim algo, porque embora calada para si, eu já disse, ela fala.

Mas ali, no meio do que ela fala, abre-se uma falha, pois ela fala o que dizem para ela, e não -- digamos -- o que vem de um violino acompanhado por um cantor que parece que ela ouve às vezes. Esse meio é o problema de hoje. O problema dela de hoje. Porque hoje o meio está assim tão meio que incomoda. É uma bela cólica em nossa barriga -- e logo depois de voltar de seu encontro com Dante!

Será que está perto de menstruar? Não. Ela refez as contas. Definitivamente não. Mas a dor não passa, e sangra, embora não na carne. Ela checou.

Dante. Dos que conhecia era o único por quem ela se comivia e -- pasme -- às vezes antes de dormir pensava nele. Não que de fato pensasse e nem se comovesse, porque como ela pensava calada, o pensamento era aquele violino abafado num quarto escuro e com isolamento acústico. Em coisa de 2 segundos não havia mais pensamento, nem violino, nem violinista, nem cantor, nem voz, tão potente o isolamento.

E Dante, embora eu não o conheça, parece-me que foi o único, com seu jeito mirrado e tímido que conseguiu fazer soar a música: ele também não fala, não tem assuntos complexos e tem cara de inteligente. De rosto triangular, sobrancelhas grossas, lábios finos, boca contraída e um olhar distante, como se visse além das coisas. Mas ele mal e mal enxergava o que estava em sua frente, por isso perfeito para ela.

E suponho que porque não havia entrelinhas que ela demonstrasse, pelo menos para o Dante, ele era o rapaz preferido dela -- e, eu repito, ela escondia de si insistentemente. Se contara para as amigas? Não, pois se não contara nem para si!

Dante também gostava dela. Começou a gostar dela há pouco, pois se conheceram há mais ou menos um mês. Mas ele sabia disso. Eles tinham amigos em comum. E por que diabos Dante a achou interessante? Era moça sem entrelinhas e -- pensava ele -- sem complexidades. Ele não sabia mas a encarava como um biscoito de queijo amanhecido: já fora mais crocante, mais suculento, mais quente, mas continuava alimento e -- porque embatumado -- leva mais tempo para ser mastigado. Isso o atraía.

Foi então que sentaram-se lado a lado, e quando o violinista e o cantor começaram a tentar incomodá-la com seu som estridente, ela suou frio por uns três milésimos de segundo. E como tudo que é dentro está isolado, houve uma troca de umas boas dez palavras para cada lado. Não mais.

Ela, que já tivera muitos outros rapazes ao seu lado, dos quais aliás reclamava muito -- coração burro! --, não falou com ele. Para isso, uma bronca no cantor e umas três pauladas no violinista bastavam: o violinista sangrava. Era bom assim porque ela dava tempo para que ele se recompusesse e voltasse a tocar mais adiante. Ela precisava dele lá, machucadinho, mas tocando assim não; era pra ficar quieto. E ela estragaria tudo se trocasse mais palavras com o Dante!

Foi quando o cantor começou novamente a entoar: Doí! Ah, como doí!

Mas decidiu calar a boca, para não se machucar.

sábado

Vermelhos e suculentos

Festa típica. Cheguei e sorri:

-- Olá, tudo bem?

Após vinte minutos:

-- Boa noite, tudo bem?

Cumprimentei pouco mais da metade das pessoas.

Várias mesas e algumas cadeiras, cuja maioria era de plástico. Tratei de providenciar uma, porque sempre são poucas. E elas diminuem com o passar do tempo, pelo menos até certa altura.

As cadeiras são em número suficiente para que haja um ar movimentação, pessoas em pé. Pessoas em pé fazem parte do marketing da festa e muitas delas dão aquele sorriso gentil com o canto da boca e falam que não querem se sentar. Imagine se quero me sentar...

Eu quero. Sentei-me.

-- E o senhor, gostaria de beber o quê?

-- Deixe-me pensar -- pequena pausa. Uma Coca-cola, por favor.

Sim. Não era dia de outra bebida. Falei um pouco com as pessoas ao meu lado. Peguei os petiscos. Umas duas vezes.

Outras pessoas conhecidas chegaram. Conversamos.

Jantar. Os primeiros esfomeados aglomeraram-se e depois de algumas brigas pela colher do arroz, voltaram aos seus lugares. Peguei depois deles o pedaço que me cabia.

Sobremesa. E as mulheres, querendo encher o vazio nelas com o doce -- e só com o doce --, correram e disputaram a mousse de chocolate como se fosse a última e queriam o pedaço de merengue com mais morangos. Ficavam pescando os morangos até sujar as mãos.

Eu não. Queria o com menos morangos. Sem morangos, se possível, mas não foi possível.

Voltei para a mesa. O assunto: morangos. É época. Daí as moças me perguntaram: morangos ou cerejas?

Cerejas, é claro! Os morangos são seus. Imensamente seus, quando acompanhados de um sorriso.

sexta-feira

Os mais doces

Pensar que a saudade existe e se vem é tão triste.

As palavras não são minhas -- muito pelo contrário, fazem parte da canção. Por fazerem parte da canção, fazem parte de todos os que a conhecem e a cantam -- e eu garanto que muitos a cantam.

O eu-lírico nesta canção diz que vai morrer de amor. É bonito. O amor sempre foi um problema para os humanos, desde que eles o conhecem. Tudo que é gente, nem que seja no começo, quer ser amado e depois, porque quer, vai amar. O que é o amor?

Eu pego a definição que defendo e que novamente não é minha. "Amar é dar o que não se tem". Quem disse foi Lacan. Se com essa definição ele não conseguiu definir de fato o amor, ele marcou o que a nele de mais essencial: só há amor e relação amorosa quando uma pessoa dá a outras aquilo que ela não tem: seja isso cordialidade, disposição, palavras ou tantas coisas quanto possam ser imaginadas. Aí vem o companheiro e me diz que amar é uma arte!

Sei lá o que se entende como arte. E esta pergunta é fundamental: o que é arte?

"Arte" no dicionário Houaiss está em vinte e cinco -- sim, vinte e cinco! -- verbetes. Nenhum deles dá conta daquilo que vem a ser arte, porque há uma diferença inerente entre aquilo que se vê e aquilo de que se fala.

Para minha imensa infelicidade e para a banalização da palavra -- que é bonita -- há esse uso de arte como técnica, como o de uma atividade colocada em prática e de forma controlada. Tem definições para o lado do platonismo e do aristotelismo; do perfeccionismo, da contenção, da consciência, do exercício de uma atividade de tudo o mais que se imaginar. Não sei se isso veio antes ou depois da onda pragmática, que permite falar que qualquer coisa é arte, que tudo é arte -- de administração a direito; de medicina a matemática. Minha vesícula, alias, se contorce a cada vez que eu ouço o tal do "A medicina é uma arte".

Pois que a medicina seja uma arte de acordo com as definições. Eu não discordo. Mas há uma diferença essencial entre, por exemplo, um livro de medicina e um de James Joyce ou ainda entre uma cirurgia e um quadro do Magritte.

Eu fico com arte para o lado do Joyce e do Magritte -- e acho que estou em melhor companhia. Talvez, fosse bom trocar de palavra, principalmente para que eu não andasse pelas ruas e visse aquele monte de lojar com os nomes mais esdúxulos que fazem uma cacofonia entre a palvra "arte" e a terminação "ar" dos verbos da primeira conjugação, do estilo brincarte, decorarte, organizarte, amarte, finalizarte.

De qualquer forma, as definições de que mais gosto de arte são aquelas que levam em conta o belo enquanto valor, como a seguinte: "obra humana, de funções práticas ou mágicas, e posteriormente considerada bela, sugestiva". Outra que me agrada é "travessura, traquinagem".

Além disso, no Aurélio antigo havia outra excelente -- algo como: "obra feita a partir das emoções de um autor e que pressupõe a criação de sentimentos e emoções naqueles que a apreciam". Isso faria da arte menos banal e mais suculenta, certamente. Mas tudo o que é homem pode ser banal e com pouco gosto. No mais das vezes, não há problema nisso, ainda que eu prefira as coisas suculentas.

O problema é a palavra perder ser significado e seu sabor, como o amor o tem perdido.

É aí muitas pessoas passam a ter medo de amar. E suas vidas se tornam um fracasso.

quinta-feira

Quantos para um sonho?

(Comentário sobre o filme "Os sonhadores", por ocasião de sua exibição no cine-clube da Faculdade de Medicina da UFG, em março deste ano)

Antes de começar a discutir um filme, caberia a pergunta: “O que é um filme?” Apesar de ser pergunta aparentemente simples, não o é, pois tudo que é filmado por uma câmera e é colocado numa tela é, por bem ou por mal, um filme: sejam gravações de terrorista no Iraque, seja um vídeo da festa de aniversário da filhinha ou uma mega-produção de Hollywood.

No entanto, não me ocuparei deste assunto. Fato é que há várias formas de analisar um filme, se o tomarmos enquanto tendo algo de artístico. Cabe lembrar que arte aqui é entendida como a expressão de sensações e sentimentos por parte de um autor, supondo a criação de sensações ou de estados de espírito de caráter estético e carregadas de vivências pessoais naqueles que apreciam da obra. Sendo assim, um filme abrange, além daquilo que está dito na história, o que não está dito, que é, de certa forma uma técnica.

Este aspecto, no caso de Os Sonhadores, está ligado, por exemplo, aos enquadramentos originais usados pelo autor – feitos sobretudo dentro de um apartamento –, às cores nas tomadas, às montagens feitas e às edições dinâmicas e com outros filmes entremeados à ação das personagens Theo, Isabelle e Matthew. Por diversos momentos, são utilizados trechos pouco óbvios de filmes bastante conhecidos entre os cinéfilos da época em Paris, entre eles: “Scarface” (original), “Shock Corridor” e “Bande à part”.

É interessante notar o jogo que Bertolucci, diretor do filme, faz com os filmes, uma vez que, diz ele, naquela época os cinéfilos de Paris faziam vários jogos assim entre si, isto é, diziam uma frase do filme ou interpretavam algum personagem para que os outros adivinhassem.

Bertolucci diz ainda que sua intenção neste filme é de que elementos do passado e do presente tenham uma interação e se unam em alguns pontos. Por isso, para ler o manifesto na “Cinemathéque”, foram chamadas as mesmas pessoas que o leram na realidade, atualmente mais velhas, obviamente. O manifesto lido no filme, diga-se é o texto original, escrito por Godard para aquela ocasião.

A ocasião na cinemateca de Paris em 1968 era a seguinte: o seu diretor, de sobrenome La Langlois, era muito prezado em seu meio – e Paris era uma capital de cinéfilos graças à política, implantada por ele, de exibir ,no lugar que ele gerenciava, todo tipo de filme. Pois bem, La Langlois, foi demitido em 1968 pelo governo francês, mantenedor do órgão, por “incompetência em seus trabalhos. Resultado: revolta dos cinéfilos!

Revolta que surtiu efeito, pois o diretor foi readmitido. E o fato dessa revolta ter dado certo impulsionou os estudantes da época a manifestarem seu descontentamento com o governo.francês, a lutarem e a demonstrarem seu flerte com os sindicatos e com as idéias socialistas – sobretudo maoítas – de revolução.

Maio de 1968, contudo, é apenas o pano de fundo para a história que o filme conta. Isso porque o filme evidencia os sonhadores – e obviamente seus sonhos. Se sonhadores não todos os jovens da época, pelo menos os personagens principais o são. São seus sonhos que dão tônica ao filme.

O fechamento da cinemateca serve como alicerce para que os três se descubram. Aliás, pode-se perceber que os irmãos da história querem descobrir alguém que se encaixe às suas fantasias, que, com eles, faça Um – uma laranja inteira, por assim dizer. Isso porque, apesar de eles fingirem romper de algum modo com as regras paternas estabelecidas – mais nos discursos do que na ação – e de o pai ser completamente desmoralizado naquela casa, eles não chegam ao incesto de fato. É preciso um terceiro elemento. Isso é o que choca: a transgressão, que Flávio Kothe, quando veio comentar o filme em Goiânia, chamou de “pouca vergonha”.

Eles usam Matthew para transgredir e o tratam como criança. Paradoxalmente, é ele que, em determinado momento, percebe que os irmãos estavam afundados em suas fantasias e que não queriam, segundo ele, “crescer”. Sabe-se lá o que vem a ser crescer, mas, por mais que os irmãos tenham sido sacudidos pelo americano, no final do filme, sua fantasia continua: eles seguem, ambos, para confrontar a polícia – o que não uma coisa exatamente eficaz – e abandonam o americano, que fica em luto.

A pedra que invade a sala e rompe a janela tenta trazer a realidade aos personagens e dar uma solução àquilo que não a tem. Pelo menos, não desta maneira.

quarta-feira

Contingências

De uma só tacada, no mesmo dia, eu quero preencher mais um buraco: o da existência!

Pretensioso, não? Não. Porque não quero dar conta da Existência em si, mas de algo menor, em todos os sentidos.

Fato é que a cada instante é necessário dar conta da existência. E na existência há este ínfimo e delgado blog. Oh! os blogs existem. E eu quero acreditar que isso não é uma mentira.

Eu afirmo que este blog existe, novamente. Se este blog existe, existe de alguma forma, ou para algo, ou em algo... Não vou traçar as direções todas e os motivos, e desmotivos, e imotivos, e amotivos, e premotivos, e promotivos, e remotivos para esta existência. Mas entre outras coisas, existe o espaço para que algo seja dito. Dito para que algo escape.

Dizer porque a contingência é anterior à coerência; a coerência é forjada da contingência. A contingência, contudo, está aí e é dita. Vez ou outra, eu vou querer dizer. Isso coloca a existência em pauta. A do blog, no caso.

A morte e a pausa

Sejam novamente bem-vindos.

A tinta começa a secar. Você pode colocar a mão e sentir OCARTAZ seco e parado, mas não coloque demais, senão mancha. Se manchar, você não lê. E dá pra sentir a diferença entre a textura desta e da última tinta. Sim, porque a última foi há um mês.

Tinta velha pode ser valiosa. Tinta nova, igualmente. Assim, eu deixo aqui minhas digressões sobre tinta.

* * *

O que é verdadeiro? Na última vez, eu disse que aqui, ou melhor, logo ali em cima, que a verdade tem estrutura de mentira. E vice-versa. Comecemos do que há em comum às duas: a forma de ficção.

A verdade, além de muitas outras coisas, é aquilo que se extrai do tempo a fim de que não seja corroido. O interessante é que esta verdade é fundamentalmente e quase somente aquilo que um sujeito percebe como duradouro. Chamemos nosso sujeito aqui de Darci.

Se Darci achar que tomar café é importante, ter tomado café pela manhã foi uma verdade. Se não, não terá sido. Mas digamos que Darci cruze a rua X para ir para determinado lugar. Embora seja "verdade" que a rua X tenha este nome, Darci pode nunca ter notado isso, e não será verdade para Darci que a rua X se chame X.

E Darci, nosso bode-expiatório, quando diz a verdade, nem sempre conta a verdade. A verdade de Darci pode muito bem ser uma mentira! E devemos acreditar em Darci porque Darci mente. E todos sabemos que Darci mentirá, enquanto existir. E precisamente no momento em que mente, a mentira para Darci e para o seu discurso é tomada como verdade. Quem não acredita numa mentira, jamais a conta.

Um sujeito acredita numa mentira nem que seja para que essa mentira oculte aquilo que o envergonha, por exemplo. E, em sendo assim, a vergonha é sentida como verdade para Darci.

A verdade, continuando neste raciocínio é não-toda: jamais completa, jamais pronta e acabada. Sempre há algo a ser colocado ali que Darci apreende como verdade, como incorroível. Darci não dirá tudo, e nem somente a verdade, e nem apenas a verdade, e nem toda a verdade. É ingênuo achar que um sujeito será capaz de fazê-lo. Darci talvez acredite. Os cientistas costumam acreditar.

Darci, enquanto viver, sente aquilo que da verdade afeta seu corpo de qualquer forma que um corpo pode ser afetado. E como um corpo pode ser afetado? Ora, com afetos. E, dos afetos, alguns enganam, outro não. É necessário separá-los a fim de obter a Verdade, que jamais existira em si ou mim: uma vez que tentarmos agarrá-la e apreendê-la, ela, boa mulher, escorrerá pelos dedos, assim como o tempo.

Eu volto: a verdade está intimamente ligada ao tempo. Ambos são infinitos, mas contáveis, escansíveis.

Por isso, uma pausa finita e infinita. Pausa que determina o fim de Darci.

sábado

OCARTAZ úmido

OCARTAZ velho foi apagado.

Um minuto de silêncio pelo luto.

...


Tudo acaba de mudar. Após meses pensando o que poderia ser feito, a direção decidiu que OCARTAZ poderia ser útil para alguma coisa. Não poderia ficar aqui sendo comido por traças e fungos. Sempre se pode dar uma função nova à coisa. Se o urinol de Duchamp pode ficar no museu, isso daqui pode virar alguma coisa.

Repintado. Refeito. Reformulado. Nunca mais será o mesmo. Nem o urinol, nem OCARTAZ.

Agora, como você pode perceber, o cheiro de tinta fresca e úmida acaba de invadir o seu nariz. E dá prazer. Dá vontade de pôr a mão, sentir a tinta grudando nos dedos apertados. Ver a marca que seus dedos deixarão na tinta.

Dá vontade, mas, por favor, não ponha a mão ainda. Não quero que fique borrado. Espere mais um pouco, até que seque.

Só mais um segundo. Pronto! Agora sim. Faça o que quiser: já secou. Aproveite para chegar mais perto, tocar e sentir o frescor inédito. Veja como a parte azul é fria.

Sentiu? Pois então: ótimo. Cuidado com a dose, mas, se quiser, fique viciado. Você não precisa ficar tímido nem esconder sua vontade de você mesmo. Não contarei a ninguém.

sexta-feira

Líquido

Que se diga o que se diz no dito. Dizer é matar. Exemplifico:

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

Manoel de Barros

Mas o que sobra da cobra ou da enseada não morre. Até que não haja.