sexta-feira

Os mais doces

Pensar que a saudade existe e se vem é tão triste.

As palavras não são minhas -- muito pelo contrário, fazem parte da canção. Por fazerem parte da canção, fazem parte de todos os que a conhecem e a cantam -- e eu garanto que muitos a cantam.

O eu-lírico nesta canção diz que vai morrer de amor. É bonito. O amor sempre foi um problema para os humanos, desde que eles o conhecem. Tudo que é gente, nem que seja no começo, quer ser amado e depois, porque quer, vai amar. O que é o amor?

Eu pego a definição que defendo e que novamente não é minha. "Amar é dar o que não se tem". Quem disse foi Lacan. Se com essa definição ele não conseguiu definir de fato o amor, ele marcou o que a nele de mais essencial: só há amor e relação amorosa quando uma pessoa dá a outras aquilo que ela não tem: seja isso cordialidade, disposição, palavras ou tantas coisas quanto possam ser imaginadas. Aí vem o companheiro e me diz que amar é uma arte!

Sei lá o que se entende como arte. E esta pergunta é fundamental: o que é arte?

"Arte" no dicionário Houaiss está em vinte e cinco -- sim, vinte e cinco! -- verbetes. Nenhum deles dá conta daquilo que vem a ser arte, porque há uma diferença inerente entre aquilo que se vê e aquilo de que se fala.

Para minha imensa infelicidade e para a banalização da palavra -- que é bonita -- há esse uso de arte como técnica, como o de uma atividade colocada em prática e de forma controlada. Tem definições para o lado do platonismo e do aristotelismo; do perfeccionismo, da contenção, da consciência, do exercício de uma atividade de tudo o mais que se imaginar. Não sei se isso veio antes ou depois da onda pragmática, que permite falar que qualquer coisa é arte, que tudo é arte -- de administração a direito; de medicina a matemática. Minha vesícula, alias, se contorce a cada vez que eu ouço o tal do "A medicina é uma arte".

Pois que a medicina seja uma arte de acordo com as definições. Eu não discordo. Mas há uma diferença essencial entre, por exemplo, um livro de medicina e um de James Joyce ou ainda entre uma cirurgia e um quadro do Magritte.

Eu fico com arte para o lado do Joyce e do Magritte -- e acho que estou em melhor companhia. Talvez, fosse bom trocar de palavra, principalmente para que eu não andasse pelas ruas e visse aquele monte de lojar com os nomes mais esdúxulos que fazem uma cacofonia entre a palvra "arte" e a terminação "ar" dos verbos da primeira conjugação, do estilo brincarte, decorarte, organizarte, amarte, finalizarte.

De qualquer forma, as definições de que mais gosto de arte são aquelas que levam em conta o belo enquanto valor, como a seguinte: "obra humana, de funções práticas ou mágicas, e posteriormente considerada bela, sugestiva". Outra que me agrada é "travessura, traquinagem".

Além disso, no Aurélio antigo havia outra excelente -- algo como: "obra feita a partir das emoções de um autor e que pressupõe a criação de sentimentos e emoções naqueles que a apreciam". Isso faria da arte menos banal e mais suculenta, certamente. Mas tudo o que é homem pode ser banal e com pouco gosto. No mais das vezes, não há problema nisso, ainda que eu prefira as coisas suculentas.

O problema é a palavra perder ser significado e seu sabor, como o amor o tem perdido.

É aí muitas pessoas passam a ter medo de amar. E suas vidas se tornam um fracasso.

quinta-feira

Quantos para um sonho?

(Comentário sobre o filme "Os sonhadores", por ocasião de sua exibição no cine-clube da Faculdade de Medicina da UFG, em março deste ano)

Antes de começar a discutir um filme, caberia a pergunta: “O que é um filme?” Apesar de ser pergunta aparentemente simples, não o é, pois tudo que é filmado por uma câmera e é colocado numa tela é, por bem ou por mal, um filme: sejam gravações de terrorista no Iraque, seja um vídeo da festa de aniversário da filhinha ou uma mega-produção de Hollywood.

No entanto, não me ocuparei deste assunto. Fato é que há várias formas de analisar um filme, se o tomarmos enquanto tendo algo de artístico. Cabe lembrar que arte aqui é entendida como a expressão de sensações e sentimentos por parte de um autor, supondo a criação de sensações ou de estados de espírito de caráter estético e carregadas de vivências pessoais naqueles que apreciam da obra. Sendo assim, um filme abrange, além daquilo que está dito na história, o que não está dito, que é, de certa forma uma técnica.

Este aspecto, no caso de Os Sonhadores, está ligado, por exemplo, aos enquadramentos originais usados pelo autor – feitos sobretudo dentro de um apartamento –, às cores nas tomadas, às montagens feitas e às edições dinâmicas e com outros filmes entremeados à ação das personagens Theo, Isabelle e Matthew. Por diversos momentos, são utilizados trechos pouco óbvios de filmes bastante conhecidos entre os cinéfilos da época em Paris, entre eles: “Scarface” (original), “Shock Corridor” e “Bande à part”.

É interessante notar o jogo que Bertolucci, diretor do filme, faz com os filmes, uma vez que, diz ele, naquela época os cinéfilos de Paris faziam vários jogos assim entre si, isto é, diziam uma frase do filme ou interpretavam algum personagem para que os outros adivinhassem.

Bertolucci diz ainda que sua intenção neste filme é de que elementos do passado e do presente tenham uma interação e se unam em alguns pontos. Por isso, para ler o manifesto na “Cinemathéque”, foram chamadas as mesmas pessoas que o leram na realidade, atualmente mais velhas, obviamente. O manifesto lido no filme, diga-se é o texto original, escrito por Godard para aquela ocasião.

A ocasião na cinemateca de Paris em 1968 era a seguinte: o seu diretor, de sobrenome La Langlois, era muito prezado em seu meio – e Paris era uma capital de cinéfilos graças à política, implantada por ele, de exibir ,no lugar que ele gerenciava, todo tipo de filme. Pois bem, La Langlois, foi demitido em 1968 pelo governo francês, mantenedor do órgão, por “incompetência em seus trabalhos. Resultado: revolta dos cinéfilos!

Revolta que surtiu efeito, pois o diretor foi readmitido. E o fato dessa revolta ter dado certo impulsionou os estudantes da época a manifestarem seu descontentamento com o governo.francês, a lutarem e a demonstrarem seu flerte com os sindicatos e com as idéias socialistas – sobretudo maoítas – de revolução.

Maio de 1968, contudo, é apenas o pano de fundo para a história que o filme conta. Isso porque o filme evidencia os sonhadores – e obviamente seus sonhos. Se sonhadores não todos os jovens da época, pelo menos os personagens principais o são. São seus sonhos que dão tônica ao filme.

O fechamento da cinemateca serve como alicerce para que os três se descubram. Aliás, pode-se perceber que os irmãos da história querem descobrir alguém que se encaixe às suas fantasias, que, com eles, faça Um – uma laranja inteira, por assim dizer. Isso porque, apesar de eles fingirem romper de algum modo com as regras paternas estabelecidas – mais nos discursos do que na ação – e de o pai ser completamente desmoralizado naquela casa, eles não chegam ao incesto de fato. É preciso um terceiro elemento. Isso é o que choca: a transgressão, que Flávio Kothe, quando veio comentar o filme em Goiânia, chamou de “pouca vergonha”.

Eles usam Matthew para transgredir e o tratam como criança. Paradoxalmente, é ele que, em determinado momento, percebe que os irmãos estavam afundados em suas fantasias e que não queriam, segundo ele, “crescer”. Sabe-se lá o que vem a ser crescer, mas, por mais que os irmãos tenham sido sacudidos pelo americano, no final do filme, sua fantasia continua: eles seguem, ambos, para confrontar a polícia – o que não uma coisa exatamente eficaz – e abandonam o americano, que fica em luto.

A pedra que invade a sala e rompe a janela tenta trazer a realidade aos personagens e dar uma solução àquilo que não a tem. Pelo menos, não desta maneira.